terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Não existem problemas insuperáveis - Conheça a história de Benvindo. Por Toni Rodrigues

Não existe problema sem solução. Tudo o que acontece de bom ou ruim depende, essencialmente, das nossas atitudes. Depende da maneira como encaramos as coisas e como nos comportamos frente aos desafios. E não pense que estou tratando sobre retórica.

Não pense que estou fazendo apenas um discurso de motivação, para que você fique imaginando que pode tudo quando, na verdade, suas opções seriam bem limitadas. Na verdade, não podemos tudo. Mas podemos sobre tudo aquilo que nos diz respeito e que nos impede de avançar, de conquistar melhores condições, de vivermos melhor e em plenitude conosco e com aqueles que nos são caros.

Certa feita tive um amigo que me era muito especial. Estudamos juntos a maior parte do antigo científico ou segundo grau, que equivale ao ensino médio de hoje. Na verdade, começamos a estudar juntos ainda no ginásio.

Como se sabe, sou filho adotivo. Adotado por uma senhora que era comerciante bem sucedida, mas que não teve a capacidade suficiente para encarar os rumos da modernidade, a economia como ela se apresenta hoje. Isso aconteceu nos anos setenta e a senhora minha mãe empobreceu muito rapidamente com o fim do milagre brasileiro e com a crise do petróleo no mundo.

Seus ganhos eram razoáveis, mas não eram resultado de nenhum planejamento de longo prazo. De nenhum estudo aprofundado sobre a realidade do mundo, do país, do estado. Por isso, quando surgiu a crise, estados como o nosso entraram em colapso porque dependiam fundamentalmente das verbas da União. E o governo federal não tinha mais dinheiro para nos enviar nem a fundo perdido nem mesmo a título de autorização para financiamento. Muito menos a fundo perdido.

Para completar, foi uma época de grande êxodo. Se nos anos cinqüenta tivemos o chamado êxodo rural, quando pessoas jovens do interior saíram para as grandes cidades, nos anos setenta tivemos êxodos urbanos, com pessoas se mudando de cidades pequenas para grandes cidades. As cidades de grande porte ficaram inchadas e a vida foi se tornando insustentável nesses lugares porque havia gente demais para os empregos, para os espaços, para os hospitais e então cresce a violência de forma avassaladora.

Enquanto isso, as pequenas cidades ficaram inviáveis porque lhes falta a mão-de-obra tão necessária para a sustentação de sua pobre economia. Todos ficamos prejudicados, enfim. Os grandes porque havia gente demais. Os pequenos porque havia gente de menos.

Minha mãe ficou sem alternativa e terminou encerrando suas atividades comerciais e conseguiu viabilizar uma aposentadoria da previdência social. Mesmo assim, nas horas vagas ela fabricava produtos artesanais, a exemplo de doce de caju, licor de jenipapo, sacolés ou dindins e com isso melhorava seus rendimentos. Melhor dizendo, nossos rendimentos.

Nessa época, eu era criança e estava entrando para a adolescência. Foram tempos amargos. Tivemos que fazer grandes adaptações ao nosso modo de vida, nada de sentirmos peninha um dos outro. Nada disso. Minha mãe dizia: temos que lutar. E nós lutamos. E tenho certeza de que, na medida do possível, vencemos. Trabalhando duro e estudando muito, para mudar a realidade.

Se ela tinha se prejudicado por falta de aprofundamento nos estudos, então passei a entender que eu devia trilhar esse caminho e estudar muito e aprender o suficiente para garantir uma sobrevivência digna num meio árido. Fiz isso e tenho orgulho demais do que conquistei.

Bem, voltando ao meu amigo, parte importante nessa história. Éramos carne e unha, andávamos juntos para todo lugar. Em todo momento, a qualquer instante, na escola, nos finais de semana, nas festinhas do bairro, nos encontros com garotas - sempre procurávamos nos apegar a jovens que fossem amigas entre si a fim de não nos apartarmos.

Mas aí aconteceu uma coisa trágica. Meu amigo começou a usar drogas. Sempre estávamos a beber, mas era uma coisa sem apego, pelo menos para mim. Nunca entendi que ele podia se viciar. E foi o que ocorreu, infelizmente. Do vício para a bebida, passou rapidamente para as drogas.

De vez em quando chegava na minha casa com um cigarro de maconha e me oferecia um trago. Uma vez uma professora me disse que é fácil entrar no mundo das drogas, difícil é sair. Discordo completamente. Mais difícil, para quem tem família e apego a convicções, é entrar. Porque se a gente não entra não precisa se preocupar em sair.

Meu amigo entrou e teve muitos problemas. Para começo de conversa, precisava ter dinheiro sempre para comprar o produto. De onde ele tiraria a grana se éramos apenas estudantes? Argumentei com ele que precisávamos de outro destino, não podíamos seguir numa espiral de autodestruição.

A princípio, fez de conta que não me ouviu. Sua mãe sempre me era muito atenciosa. Seu pai e irmãos, igualmente. Mantivemos uma longa amizade. Meu amigo insistia em se autoflagelar através do uso de drogas. Aparecia nas ocasiões mais inóspitas me pedindo dinheiro para comprar maconha.

Dizia abertamente: não vou te enganar, quero dinheiro para isso mesmo. Meus argumentos eram inúteis para ele. Até o dia em que foi esfaqueado numa briga com elementos de rua. Estava desaparecido há várias semanas e seus familiares estavam angustiados. Sua mãe me telefonou na televisão onde eu apresentava programa jornalístico de grande audiência.

Falei com amigos na polícia, em grupos de assistência social. Dei sua descrição, contei sobre seu drama, o vício, que era um sujeito dócil e tinha estudo. Havia concluído o segundo grau e não entrou para a faculdade por causa do seu problema.

O delegado que me atendeu foi bastante solícito e logo encaminhou equipes para proceder a buscas justamente no local onde ele fora visto pela última vez, a Praça Saraiva, no adro da igreja de Nossa Senhora das Dores. Alguns dias depois o delegado me ligou para me dar a notícia.

Ele havia se desentendido com um sujeito na Praça do Liceu — estava morando na rua e dormindo sob marquises, durante a madrugada ou a qualquer hora, fazia suas necessidades em jardins públicos ou terrenos baldios, era uma criatura repudiada pelos comerciantes e residentes — e fora esfaqueado no abdômen.

Levado para o pronto socorro do HGV. Ali, bem cuidado por uma jovem enfermeira, que passou a lhe dispensar especial atenção. Recuperado, voltou para casa. Recebi ligação de agradecimento da sua mãe. Ela me disse que o filho recebera um tratamento digno por causa da minha presença na história. As pessoas gostavam de mim e, conseqüentemente, faziam de tudo para ser agradáveis.

Respondi que não fizera nada, a não ser honrar nossa velha amizade dos tempos de colégio e agradecer pela mesma atenção que sempre recebi dos seus familiares.

Meu amigo começou uma relação com a enfermeira, que entrou em sua vida como um verdadeiro anjo da guarda, dando a ele um novo sentido para existir. Outro dia o reencontrei. Está trabalhando como motorista de ônibus. Convidou-me a ir até sua casa, no bairro Aeroporto. Estive com ele, a esposa e duas filhas lindas.

Neste caso, a solução do problema foi a chegada do amor. Este meu companheiro sempre se julgou um cara sem sorte na vida, sem capacidade para os estudos, por isso não conseguia nenhum relacionamento, nada que o fizesse despertar. Então apareceu Mariângela e Benvindo se sentiu alguém importante e capaz de ressurgir.

Prestou vestibular para a faculdade de matemática e já está bem perto de concluir. Disse a mim que pretende continuar trabalhando como motorista de ônibus. É uma profissão digna. Foi nela que consegui sustentar minha família depois das drogas. E nela pretendo permanecer até quando possível. De fato, não existem problemas sem solução. E nem precisa ser algo grandioso.

Basta uma boa companheira (ou companheiro), alguém que te ame de verdade e que se doe para você, que fazendo isso possa receber também o seu amor e consideração; basta um emprego de verdade, numa empresa que realmente valorize o seu trabalho; basta uma família, um lar.

Benvindo foi salvo pela família e pela descoberta do amor. Sinto-me honrado em ter participado dessa bela história de sofrimento, mas também, e principalmente, de soerguimento. #Avante.



(Toni Rodrigues)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seja bem-vindo e diga-me o que pensa.