quarta-feira, 29 de março de 2023

Sobre a atual vergonha de ser brasileiro

 O POEMA


O autor Affonso Romano de Sant'anna


“Projeto de Constituição atribuído a Capistrano de Abreu:

Art. 1º - Todo brasileiro deve ter vergonha na cara.

Parágrafo único:

Revogam-se as disposições em contrário.


"Que vergonha, meu Deus! ser brasileiro

e estar crucificado num cruzeiro

erguido num monte de corrupção.


Antes nos matavam de porrada e choque

nas celas da subversão. Agora

nos matam de vergonha e fome

exibindo estatísticas na mão


Estão zombando de mim. Não acredito.

Debocham a viva voz e por escrito.

É abrir jornal, lá vem desgosto.

Cada notícia

- é um vídeo-tapa no rosto.


Cada vez é mais difícil ser brasileiro.

Cada vez é mais difícil ser cavalo

desse Exu perverso

- nesse desgovernado terreiro.


Nunca te vi tamanho abuso.

Estou confuso, obtuso,

com a razão em parafuso:

a honestidade saiu de moda,

a honra caiu de uso.


De hora em hora

a coisa piora:

arruinado o passado,

comprometido o presente,

vai-se o futuro à penhora.

Me lembra antiga história

daquele índio Atahualpa

ante Pizarro - o invasor,

enchendo de ouro a balança

com a ilusão de o seduzir

e conquistar seu amor.


Este é um país esquisito:

onde o ministro se demite

negando a demissão

e os discursos são inflados

pelos ventos da inflação.


Valei-nos Santo Cabral

nessa avessa calmaria

em forma de recessão

e na tempestade da fome

ensinai-me

- a navegação.


Este é o país do diz e do desdiz,

onde o dito é desmentido

no mesmo instante em que é dito.

Não há lingüistica e erudito

que apure o sentido inscrito

nesse discurso invertido.Aqui

o dito é o não-dito

e já ninguém pergunta

se será o BeneditoAqui

o discurso se trunca:

o sim é não,

o não, talvez,

o talvez,

- nunca.


Eis o sinal dos tempos:

este é o país produtor

que tanto mais produz

tanto mais é devedor.


Um país exportador

que quanto mais exporta

mais importante se torna

como país

- mau pagador.


E, no entanto, há quem julgue

que somos um bloco alegre

do "Comigo Ninguém Pode",

quando somos um país de cornos mansos

cuja história vai ser bode.


Dar bode, já que nunca deu bolo,

tão prometido pros pobres

em meio a festas e alarde,

onde quem partiu, repartiu,

ficou com a maior parte

deixando pobre o Brasil.


Eis uma situação

totalmente pervertida:

- uma nação que é rica

consegue ficar falida,

- o ouro brota em nosso peito,

mas mendigamos com a mão,

- uma nação encarcerada

doa a chave ao carcereiro

para ficar na prisão.


Cada povo tem o governo que merece?

Ou cada povo

tem os ladrões que a enriquece?

Cada povo tem os ricos que o enobrecem?

Ou cada povo tem os pulhas

que o empobrecem?


O fato é que cada vez mais

mais se entristece esse povo

num rosário de contas e promessas,

num sobe e desce

- de pranto e preces


Ce n'est pas un pays sérieux!

já dizia o general.

O que somos afinal?

Um país pererê? folclórico?

tropical? misturando morte

e carnaval?


- Um povo de degradados?

- FIlhos de degredados

largados no litoral?

- Um povo-macunaíma

sem caráter nacional?


Ou somos um conto de fardas

um engano fabuloso

narrado a um menino bobo,

- história de chapeuzinho

já na barriga do lobo?


Por que só nos contos de fada

os pobres fracos vencem os ricos ogres?

Por que os ricos dos países pobres

são pobre perto dos ricos

dos países ricos? Por que

os pobres ricos dos países pobres

não se aliam aos pobres dos países pobres

para enfrentar os ricos dos países ricos,

cada vez mais ricos,

mesmo quando investem nos países pobres?


Espelho, espelho meu!

há um país mais perdido que o meu?

Espelho, espelho meu!

há um governo mais omisso que o meu?

Espelho, espelho meu!

há um povo mais passivo que o meu?


E o espelho respondeu

algo que se perdeu

entre o inferno que padeço

e o desencanto do céu.”


*** *** *** 


QUEM É AFONSO ROMANO


Nas décadas de 1950 e 1960 participou de movimentos de vanguarda poética. Em 1961 formou-se em letras neolatinas pela então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UMG, atual Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


Em 1965 lecionou na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), Estados Unidos, e em 1968 participou do Programa Internacional de Escritores da Universidade de Iowa, que agrupou 40 escritores de todo o mundo.


Em 1969 doutorou-se pela UFMG e, um ano depois, montou um curso de pós-graduação em literatura brasileira na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Foi Diretor do Departamento de Letras e Artes da PUC-Rio, de 1973 a 1976, realizando então a "Expoesia", série de encontros nacionais de literatura.


Ministrou cursos na Alemanha (Universidade de Colônia), Estados Unidos (Universidade do Texas e UCLA), Dinamarca (Universidade de Aarhus), Portugal (Universidade Nova) e França (Universidade de Aix-en-Provence).


Sua tese de doutorado abordou uma análise da poética de Carlos Drummond de Andrade, com o título Drummond, um gauche no tempo, em que faz uma análise do conceito de gauche ao longo de sua obra literária.


Durante os anos de 1990-1996 foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional, onde desenvolveu grandes ações de incentivo à leitura, como o Sistema Nacional de Bibliotecas.


Foi cronista no Jornal do Brasil (1984-1988) e do jornal O Globo até 2005. Atualmente escreve para os jornais Estado de Minas e Correio Braziliense. É casado com a também escritora Marina Colasanti.


Fonte: Linkedin

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