quarta-feira, 5 de julho de 2023

NOVELAS DO PODER (*)


Recebo ameaças constantemente. Numa delas, o autor anônimo afirma por e-mail: “Cuidado com o que diz e escreve. Teus passos estão sendo monitorados.” Noutra, afirma-se: “Tuas críticas não dirigidas politicamente. Está na hora de silenciar, senão outros o farão.”

Também recebo alguns telefonemas com o mesmo sentido. Uma voz cavernosa (visivelmente empostada) me diz: “Por que não te cala? Será que precisaremos fazer isso por ti?” Em outro, enfatiza: “Tem gente te observando.” Confesso minha aflição diante disso e procuro me tranquilizar lembrando que sempre foi assim desde os tempos da Rádio São José dos Altos.

Havia um sujeito muito louco que tinha o hábito de ir para a praça central ao meio dia abater passarinhos. Eram pardais que havia aos milhares e o indivíduo diariamente por lá, mandando chumbo contra as avezinhas. Tudo isso diante do silêncio de toda a população, que tinha muito medo de suas reações intempestivas.

Fiz na rádio uma ampla matéria, inclusive entrevistando ambientalistas e autoridades policiais. Ele, é claro, não quis se pronunciar. Mandou para mim, numa caixa de sapatos, duas aves abatidas com tiros de “ar comprimido”. Pensava que assim iria me calar – mas não conseguiu. Continuei a série de entrevistas e reportagens até que o delegado de polícia decidiu apreender-lhe a espingarda.

AMEAÇADO NA CHURRASCARIA

Uma vez, alta noite, estava numa churrascaria da cidade me divertindo com alguns amigos quando fui surpreendido pelo dito cujo. Ele estava visivelmente perturbado e disse que eu não perderia por esperar. Pagaria pela espingarda dele que fora apreendida.

Comuniquei o fato ao delegado e tomei algumas precauções, como não andar sozinho à noite. Mas foi apenas isso. Poucas semanas depois ele desapareceu da cidade, abandonando mulher e filha e nunca mais aparecendo. Conta-se que estaria morando em cidade do Pará e espero sinceramente que ele fique por lá por toda a vida.

Em outra oportunidade fiz matéria denunciando uso da ambulância de uma cidade da região sul do estado no transporte de maconha. O veículo passava despercebido pelos postos da polícia rodoviária. Quem desconfiaria de um carro para transporte de doentes?! Recebi denúncia de uma pessoa que residia perto da delegacia de entorpecentes, apurei os fatos junto ao delegado, que confirmou toda a história (embora, mais tarde, tenha recuado em suas declarações).

A IMPOSIÇÃO DO PODER POLÍTICO

O poder político se impôs. Os acusados, dentre os quais um vereador que mais tarde seria prefeito e implicado em envolvimento com o crime organizado, foi inocentado da acusação e moveu processo contra mim. Ao mesmo tempo passei a receber ameaças no telefone da redação. Era uma voz que dizia: “Toda ação corresponde a uma reação. Fique velhaco.” Essa expressão é utilizada para dizer que devemos estar atentos.

Foram vários meses de apreensão. Acordava de madrugada com faróis de um carro sobre a parece frontal de minha residência na avenida João de Paiva. Tinha receio de que fizessem mal à minha mulher e filho. Felizmente, nada aconteceu de mais grave, a não ser minha mudança diária de itinerário para chegar ao trabalho. Ora de carro, ora de ônibus, ora de táxi. Não podia dar mole para os perseguidores.

Um amigo policial me disse que era apenas paranóia da minha parte. Pessoas que ameaçam não costumam levar a cabo suas afirmações. “Não quero pagar para ver”, foi o que eu disse. E ponto final. Estou na profissão há muito tempo para não brincar com o imponderável. Quanto à paranóia, em outra oportunidade o delegado Baretta me contou que a polícia descobriu plantio de maconha em área da barragem de São Raimundo Nonato e que foram presos vários pistoleiros. Dentre eles, um que sabia meu nome e endereço.

DEMITIDO POR DENUNCIAR DESVIOS DE RECURSOS

As ameaças, em grande parte, não buscam atingir a nossa integridade física. Atingem diretamente o nosso bolso. Isso acontece quando jornalistas são demitidos por contrariar interesses de políticos ou de empresários que tenham influência junto aos meios de comunicação. Passei por isso também, inclusive no começo da minha carreira, quando fui demitido por denunciar desvios de recursos e alimentos destinados a pequenos agricultores afetados por seca prolongada. Os acusados chegaram a me afrontar publicamente com uma pistola, mas novamente a graça divina intercedeu em meu favor.

Nos anos 90, trabalhando para o jornal Correio do Piauí, fui procurado por um empresário do setor gráfico. Ele tinha proposta a me fazer. Disse que um grupo empresarial estava pensando em montar um jornal alternativo (semanal) para discutir em profundidade os grandes temas do estado –política e meio ambiente entre eles. “O dono quer você como editor”, ele me disse  e pediu que eu me encontrasse com o investidor.

Eu tinha menos de 30 anos e estava em busca de evolução profissional. Por isso, aceitei o encontro, que se deu numa churrascaria da zona sudeste, à margem de movimentada rodovia. Em meio ao rodízio de carnes o suposto empresário apareceu amparado por um verdadeiro cortejo de guarda-costas e aduladores. Alguns exibiam ostensivamente as suas armas. 

CARA A CARA COM O PODEROSO CHEFÃO

Era um oficial da polícia temido pelo suposto envolvido com crimes de toda ordem – chantagem, extorsão, assassinato. Falou para mim que queria montar o seu próprio veículo porque os existentes o atacavam muito e não lhe davam a menor chance de defesa. Tinha projeto político em nível estadual e queria reconstruir a sua imagem junto à sociedade. “Nos meios políticos, eu mando”, asseverou. “Todos comem aqui na palma da minha mão.” Nem tanto.

Diante da sua presença, falei que não tinha nenhum interesse no projeto. Ficava muito agradecido pelo reconhecimento, e pelo convite, mas pedi licença para me retirar. O homem ficou estupefato. “O que houve?!”, questionou-me. Nada demais. Cuidei-me em retirar apressadamente. Não queria compactuar com aquele tipo de coisa.

JORNALISTA ASSASSINADO

Um jornalista de televisão não se conteve e aceitou o convite. Ele fazia verdadeiros discursos em seu programa na defesa do dito oficial. Tornou-se editor do alternativo por alguns meses até licenciar-se para disputar as eleições. Foi assassinado faltando poucos dias para a votação na qual todas as pesquisas o davam como eleito em primeiro lugar.

Meu amigo empresário ficou muito chateado com minha atitude e contou para outros jornalistas que eu fora deselegante com o temido homem. Aquilo poderia se voltar contra mim posteriormente. Isso nunca aconteceu e nem haverá de acontecer. A sinceridade não pode ser tomada como agressão. Eu jamais me prestaria ao papel de editar um jornal em defesa de pessoas com aquela folha corrida.

Fui criado por duas senhoras católicas. Dona Anaíde, minha mãe, e dona Amália, minha tia, eram devotas de Santo Antônio. Frequentavam assiduamente a Catedral de Campo Maior, muito embora morássemos em Altos, na área de abrangência da Matriz de São José. Eu costumava conversar muito com ambas e elas sempre me ensinavam coisas positivas sobre a vida. Nunca fazer o que não é certo era uma delas. Nunca apoiar os que cometem erros constantemente era outra. E assim por diante. Matar pessoas não é certo. Matar pessoas com frequência é persistir no erro.

FERNANDINHO BEIRA MAR NO PIAUÍ?!

Em 2003, no primeiro ano da gestão petista, recebemos informações de que o perigoso traficante Fernandinho Beira Mar seria mandado para um presídio piauiense. O presidente da República mantivera entendimento com o governador para reformar uma penitenciária em situação de penúncia que fora inaugurada poucos antes, transformá-la em presídio federal de segurança máxima e então mandar para cá os mais perigosos elementos do crime nacional, entre o já citado.

Pensei que tinha de fazer uma reportagem diferente. Todos já haviam noticiado o pronunciamento contrário do senador Heráclito Fortes e a manifestação favorável do chefe do executivo estadual. Houve debates na Assembleia Legislativa, mas a maioria da imprensa negligenciou cobertura sobre eles. O que os deputados diziam não teria nenhuma importância.

Decidi colher imagens aéreas do presídio e se possível adentrar suas dependências para mostrar ao distinto público a precariedade de suas instalações. Consegui com um major amigo meu espaço num helicóptero a serviço da polícia militar. O comandante me explicou que não poderia pousar dentro do presídio. Assim, ele apenas baixaria e ficaria flutuando a alguns metros do solo em tempo suficiente para que eu e o cinegrafista Mário Artur pudéssemos saltar. Saltei com ajuda de um sargento da tropa de elite e ao pisar em terra firme olhei para a aeronave que se perdia na distância de um céu todo azul.

APRISIONADO NO PRESÍDIO DE SEGURANÇA MÍNIMA

Colhemos imagens internas que provavam que uma simples reforma não seria suficiente. O reboco das paredes era tão frágil que se desmanchava com a fricção das minhas unhas. Não era à toa que adversários do governo anterior chamavam aquela obra de “sonrisal”.

De repente, escutei um clic metálico às minhas costas. O cinegrafista estava pálido. Havia quatro policiais militares armados de metralhadoras a poucos metros de nós. As armas estavam apontadas em nossa direção e eles só não fizeram fogo (confessaram depois) porque perceberam tratar-se de uma equipe de televisão. Não haviam percebido a manobra do helicóptero para deixar-nos e disseram que poderíamos ser presos por estarmos ali sem autorização do secretário de Justiça, um sujeito rancoroso por demais e que detesta a imprensa.

Os policiais só nos deixaram sair depois de consultar o comando. O que fariam conosco se não tivessem conseguido? Poucos minutos depois, já no carro de reportagem, recebi telefonema da direção de jornalismo determinando que deveríamos seguir direto para Karnak. O governador nos esperava para uma manifestação sobre o presídio.

A TENSÃO DO GOVERNADOR

Ao chegar no gabinete, notei que ele estava tenso. Procurou não demonstrar, mas estava aborrecido com a matéria e principalmente com a pressão recebida do secretário, que ligou ao saber da minha incursão e passou meia hora ao telefone transmitindo sua péssima impressão sobre minha pessoa. O tal repórter, teria dito ele ao governador, vai nos fazer perder os recursos federais para a realização da reforma. Curioso que o próprio tenha construído sua carreira política como apresentador de programa de rádio em que fazia doações de alimentos, móveis e bolsas de estudo para pessoas pobres.

O governador, ao ser entrevistado, comunicou que a obra não mais seria realizada e que Fernandinho Beira Mar não mais viria ao Piauí. Não deixou de fazer discurso contra os pessimistas que na sua opinião trabalham contra o desenvolvimento do estado. Nunca entendi como é que a presença de um marginal de alta periculosidade e repudiado por toda a nação poderia contribuir em desenvolver o nosso estado. Mas também não consegui compreender muita coisa sobre a atuação do aludido governante. Sei apenas que na medida em que ele se aproximava do comando da empresa em que eu trabalhava em perdia espaços, até culminar em meu afastamento da emissora menos de um ano depois.  Sigamos adiante.

(*) Do livro UM REPÓRTER, de Toni Rodrigues (edição do autor, 2011)